Sempre lembro desse caso: como pode uma mulher levar um soco por colocar cebola no arroz?

Márcia Miranda Cunha é psicóloga do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, lotada desde 2016 no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Três Rios, e coordenadora do Programa Flor de Lótus, programa que atende e orienta mulheres vítimas de violência e tornou-se referência nacional ao reduzir índices de reincidência com as ações executadas. No bate-papo, a profissional conta sua trajetória como psicóloga jurídica e as atividades desenvolvidas no enfrentamento à violência doméstica.
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Pra gente começar: qual foi sua trajetória até chegar ao Juizado?

Sou formada há 30 anos pela Universidade Católica de Petrópolis. Logo fiz pós-graduação em psicossomática e fazia atendimento clínico. Trabalhei 15 anos em consultório. Também trabalhava nas prefeituras de Sapucaia e Três Rios. Até que surgiu o primeiro concurso para psicólogo jurídico do TJRJ e fiz. Isso foi em 1998. Fui chamada quase três anos depois para a Comarca de Valença. Fiquei lá por quatro anos e, em seguida, sete anos em Paraíba do Sul. Em 2014 fui para o Rio de Janeiro trabalhar em um projeto na corregedoria chamado Pai Presente. Sempre gostei muito de projetos e esse busca identificar as crianças sem nomes paternos registrados nos documentos, localizar esses pais e incluir na documentação. Isso muda a vida das crianças. Até que, em 2016, por questões familiares queria voltar para Três Rios e a Dr.ª Elen [de Freitas Barbosa, juíza] queria desenvolver esse trabalho de psicologia aqui no Juizado. O Cejusc (Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania) também estava parado. Então voltei para coordenar o Cejusc e ser a psicóloga do Juizado. Depois consegui ficar exclusivamente no Juizado.

E como foi desbravar a psicologia no Tribunal de Justiça?

Chegamos literalmente no escuro e abrindo portas. Não existia esse cargo. Fomos a primeira turma de concursados e fui a primeira psicóloga lotada Comarca de Valença. Fui muito bem recebida por juiz, promotor, defensor, pelas pessoas com as quais trabalhei diretamente. Não existia estrutura física preparada para o trabalho, para os atendimentos, por ser algo novo. Mas o acolhimento e a recepção foram ótimos. Essas vagas foram legitimadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que exigia existência de equipes técnicas. Esse trabalho foi bem feito por todos nós, profissionais. Assim, juízes, por exemplo, logo perceberam que existia uma diferença positiva quando tomariam uma decisão pautada em um parecer psicológico.

Já tinha muito trabalho nesse início?

Não tinha. Como era algo novo, não tinha ninguém para ensinar e eu estava em uma comarca do interior, ficava na salinha estudando e me preparando. Apareceu o primeiro processo, depois o segundo, e assim fomos dando esse movimento. Conforme fornecíamos pareceres em processos, juízes e promotores percebiam logo que aquilo contribuía com o trabalho deles. Era como se fossemos com um lanterna clareando algo no que diz respeito ao comportamento humano e às emoções. Assim, a cada novo processo passavam a vir mais. Hoje, o número de psicólogos lotados não dá conta de todo o trabalho.

A área evoluiu muito nessas duas décadas?

Creio que o TJRJ é um dos tribunais que mais tiveram esse crescimento. Poucos juízes que contam com equipe técnica trabalham sem solicitar a equipe técnica. No início, os juízes acreditavam que o psicólogo estava ali só para dar parecer no processo, mas hoje entendem que nosso atendimento é para além desse parecer.

Sentiu muita mudança como profissional com a migração para a psicologia jurídica?

Isso tem diferença em todos os sentidos, primeiro pela insegurança. Eu já tinha uma bagagem em atendimento clínico, experiência com alunos, professores e pais na psicologia educacional e com crianças especiais. Tinha certa bagagem que me ajudou, mas causou insegurança porque era algo novo. Porém, o fato de ter sido a primeira pessoa lotada ali, em Valença, me deu liberdade para montar o trabalho. Se me perguntar se sou feliz como psicóloga jurídica, sim, sou. É muito desgastante porque trabalhamos com a dor do outro e tentando contribuir para a vida um pouco mais saudável emocionalmente. Processos são coisas muito pesadas. Um processo de guarda, por exemplo, tem uma família que se desfez. A relação conjugal acaba, mas os filhos existem e precisamos cuidar para que aquele ex-casal entenda que a relação parental continua. Isso não é uma coisa fácil no início do conflito porque alguém pode estar com muita dor e raiva, então a criança passa a ser como um objeto de um contra o outro. Precisa ter uma habilidade muito grande para mostrar aos pais que devem priorizar o que é bom para o filho. Não é um trabalho fácil.

Pegando o exemplo da separação, como a chegada da equipe técnica contribuiu com os processos?

O juiz ia para a audiência com os ex-companheiros e, conforme a idade, a criança não participa. Então o juiz ouvia uma parte, a outra e, com luz à lei, determinava e tomava a decisão. Quando passou a ter equipe técnica passamos a fazer as entrevistas, visitas, chamar avós e professores, por exemplo, quando necessário. Se a gente parar para ver, passou a ter um cuidado maior. O juiz não tem a competência para isso porque ele estudou Direito, vai olhar a lei e tomar a decisão. Até porque nem teria tempo pelo volume de processos. O psicólogo faz esse trabalho, coloca sua análise no papel e junta ao processo para o juiz tomar a decisão. Estamos aqui para ser a luz do juiz. No início tínhamos um parecer do psicólogo e outro do assistente social. Depois passamos a compartilhar as análises e, muitas vezes, fazer um parecer único.

Como foi sua aproximação com as ações relacionadas à violência contra a mulher?

Vim trabalhar com a Dr.ª Elen em 2016 no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. A equipe técnica no Juizado de Violência é recente, começou depois da Lei Maria da Penha, que é de 2006. Ter um psicólogo jurídico nesse juizado em uma comarca do interior foi algo marcante já naquele momento, foi um dos primeiros. Assim que cheguei, a Dr.ª Elen falava que sentia estar enxugando gelo em casos que o autor de violência aparecia poucos meses depois em novo processo. Falei que tinha visto um grupo reflexivo no Rio de Janeiro e tinha vontade de fazer aqui. Ela logo apoiou e montamos o primeiro grupo reflexivo de autores de autores em situação de violência doméstica em 2017. No mesmo período, os Guardiões da Vida, do 38º Batalhão da Polícia Militar, acompanhavam as audiências para prestarem assistência às vítimas. Como eles faziam algumas ações e nós também, tivemos a ideia de juntar em um programa, a Dr.ª Elen apoiou e nasceu o Flor de Lótus, que hoje tem 10 ações distintas de prevenção e combate à violência contra a mulher.

Os casos chegam ao mesmo tempo no programa e para a Justiça?

Não. Quando chega demanda espontânea, geralmente a mulher não fez a denúncia ainda. Na maioria das vezes ela conhece o Flor de Lótus e vem pedir orientação. A partir disso ela faz o registro na delegacia ou pedido de medida protetiva para, só então, virar processo.

Quais são essas ações do Flor de Lótus?

A Resenha Juvenil é um trabalho preventivo que fazemos nas escolas em encontros com jovens que estão nas idades que começam os relacionamentos. Muitas vezes nesses primeiros flertes a violência psicológica começa a se instalar também. Essa ação cresceu e passamos a levar às empresas. Com isso, temos a Formação de Multiplicadores, ação com alunos de universidades, dos cursos de Direito e Psicologia, que participam dessas resenhas e o objetivo é que sejam multiplicadores das informações. Outra é o Encontro Multidisciplinar, um encontro com policiais civis, militares e oficiais de justiça sobre empatia e como se portar nesses casos de violência. Duas ações são coordenadas pela Patrulha Maria da Penha: o Chá de Mulheres, que reúne mulheres vítimas de violência doméstica na sede do Batalhão para um chá da tarde e palestras, e a Sala Humanizada, um espaço também no Batalhão para atendimento e acolhimento a essas vítimas. Temos uma ação voltada aos agentes de saúde chamada Olhar Que Acolhee a ideia é que entendam que precisam acolher essas mulheres, tanto as que já chegam informando que foram vítimas quanto, principalmente, aquelas que não dizem, mas dão sinais. A mulher pode chegar ao atendimento com um supercílio cortado e falar que bateu na quina do armário, mas o profissional de saúde vê que tem uma mancha roxa no braço e isso precisa chamar atenção.

Esse tem alcançado bons resultados?

Bastante. Tem uma coisa que se chama notificação compulsória. Agentes de saúde precisam informar à Secretaria de Saúde sobre esses casos. Existe um termo também que é a “lei do minuto seguinte”. Se uma mulher apanhou, o primeiro momento é de socorrer essa vítima. É mais urgente que o registro na delegacia, que pode ser feito no dia seguinte. Antes de tudo vem o cuidado com a saúde da mulher.

Seguindo com as ações…

Temos o Varal Solidário. Recebemos doações o ano inteiro de roupas, sapatos, bolsas e itens de higiene pessoal. Muitas mulheres vítimas de violência perdem tudo o que tinham e deixamos esses itens à disposição delas. É para trabalhar a autoestima. O próprio nome do programa tem relação com isso. A flor de lótus tem um simbolismo cultural porque representa o renascimento. Ela é encontrada na água turva do pântano e é ali que ela floresce. No fim do dia ela está com as pétalas misturadas naquela água e parece que ela morreu. No dia seguinte, com a claridade, ela floresce novamente. A gente fez essa analogia. A gente recebe essa mulher sem perspectiva de vida e queremos que o programa dê suporte para entender que existe vida após a violência. Outra ação que temos é a reunião de rede, que acontece a cada dois meses com coordenação da Dr.ª Elen, para reunir Guarda Municipal, Patrulha Maria da Penha, OAB e Secretarias Municipais para tratar de casos mais emblemáticos. Todas essas ações que estou falando abrangem Três Rios, Areal e Comendador Levy Gasparian.

Por fim estão os grupos, certo? Como é o das mulheres?

É a ação que chamamos de “Você não está sozinha” e acontece toda última quinta-feira do mês reunindo mulheres vítimas de violência que receberam medida protetiva. É um encontro para falarmos sobre o ciclo da violência e conta com participação de representante da OAB para falar tudo sobre a lei, sobre como pedir ajuda se o autor descumprir.

Como funciona a medida protetiva? A mulher vítima pode desistir no meio do caminho?

A mulher está sendo vítima de violência, está com medo e é a vida dela que está ali. É preciso afastar esse homem da presença dela para tentar preservar a vida, isso é a medida protetiva. Se a própria mulher chegar aqui, disser que não tem mais medo dele e não quer a medida, fica difícil o juiz manter. É um direito dizer que não quer mais, porém, ainda assim o Estado tenta proteger. Quando o pedido chega, o juiz aprecia para entender. Aqui, em alguns casos a Dr.ª Elen pede visita dos Guardiões da Vida para entender o que aconteceu, em outros passa para o setor de psicologia conversar e entender, ou pode determinar uma audiência especial para conversar com a vítima e com o autor. Nos casos mais graves ela não tira a medida sem audiência. O processo vai continuar porque foi iniciado, mas a medida protetiva pode ser retirada.

Esse pedido de retirada acontece muito?

É bem comum que muitas venham uma semana depois para fazer o pedido. Algumas porque a família dele pressionou, outras por ter filhos e não saber o que fazer, outras ainda por dependência emocional do homem, por não saber viver sem ele. Os estudos mostram que, em média, só na sétima tentativa a mulher consegue sair do relacionamento abusivo. Claro que vai ter a que sai desse relacionamento na segunda tentativa, assim como terá a que vai viver com esse homem até o último dia e morrer com o relacionamento abusivo. Mas, a média é essa: sete tentativas.

Alguma explicação principal para a dificuldade de sair apesar do sofrimento?

É difícil sair dessa relação. Vamos pensar em relacionamento amoroso sem ser abusivo. Quando uma parte do casal resolve que não quer mais, não é difícil? Muitas vezes pode ficar um tempão tomando coragem para dizer que não quer mais. O que foi pego desprevenido fica perdido, adoece, fica deprimido. Isso em uma relação dita saudável. Agora, imagina em uma relação abusiva, com o autor de violência tendo uma mente manipuladora que faz violência psicológica. Ele conduz essa relação de maneira que essa mulher fica com baixa autoestima e vai ser muito mais difícil sair dessa relação. Ela tenta, mas volta. Sem falar do ciclo da violência, um estudo feito por uma psicóloga americana que mostra que principalmente em relações intimas de afeto essa violência contra a mulher acontece em forma de ciclo. Primeiro tem a tensão, com discussão, violência moral, psicológica. Vai para a segunda fase, a explosão, que é a violência física propriamente dita. Pode ser quebrar um copo, bater uma porta. Quando passa a fase da explosão vem a lua de mel. É um “pseudo arrependimento”. O homem está com medo de ser denunciado porque sabe que extrapolou ou medo de perder aquela mulher, que é sobre quem ele tem domínio. É o medo que faz com que ele mude temporariamente o comportamento. Mas, sem acompanhamento ou tratamento, ele não vai mudar. Ele chora, pede desculpa, diz que ama e que não vai fazer novamente… A mulher está ali vulnerável, com raiva e medo, mas também gosta dele e perdoa. O risco é que ela perdoa várias vezes, por isso um ciclo.

Na prática você vê claramente esse ciclo?

Quando a mulher vem pedir para retirar a medida protetiva já está entrando na lua de mel. O ciclo acontece mesmo. Quando a gente fala para elas sobre o ciclo, a maioria delas diz que é exatamente isso que acontece. Elas se identificam, mas não conseguem sair. Por isso temos todo esse trabalho do Flor de Lótus para tentar amparar essa mulher porque não é fácil para ela.

Como quebrar o ciclo?

Quem deve quebrar é a mulher. O homem não vai quebrar porque está cômodo. Ele tem o domínio da relação. Muitas vezes a mulher não está encorajada a quebrar o ciclo, então, nós, enquanto sociedade, podemos fazer nossa parte. Se você sabe de uma vizinha que pode estar passando por violência, alguns sinais recorrentes, liga para o 180, que é a ouvidoria da mulher, e informa. Não precisa de identificar. Isso vai para o Ministério Público e começa um trabalho, que pode, por exemplo, fazer uma equipe dos Guardiões da Vida fazer uma visita. Só isso já pode inibir aquele autor de continuar. Pode, também, falar para procurar o Flor de Lótus que damos orientações. Mas, quem precisa quebrar o ciclo é ela mesma. Antigamente ouvíamos que em briga de marido e mulher ninguém deve meter a colher. Hoje, incentivamos meter a colher, sim. Isso não é entrar na briga, mas fazer a informação chegar à mulher sobre como pedir ajuda. informação de onde ela pode obter ajuda. Se ouvir ou presenciar a violência acontecendo, chama a Polícia Militar.

E qual é a ação do programa com os homens?

A Dr.ª Elen determina 15 autores que participarão do grupo por 10 semanadas seguidas, toda segunda-feira. O principal objetivo do grupo reflexivo é ser um trabalho preventivo no sentido da reincidência. A maioria dos autores que estão no grupo tem medida protetiva contra a vítima. O objetivo é que, pelas reflexões, não façam de novo a violência. Tem que ter a punição porque a lei prevê punição, mas só punir muda alguém? Entre as medidas protetivas de urgência previstas pela Lei Maria da Penha que o juiz pode determinar ao suposto autor antes mesmo de qualquer condenação está o processo reeducativo, que é o caso desse grupo reflexivo. Ele também pode ser uma substituição da pena ao homem condenado que não tenha outros processos ou condenações. Ao final dos encontros eles recebem um certificado e a cópia vai para o processo.

Eles chegam dispostos a ouvirem as reflexões?

Eu gosto desse grupo porque fomos crescendo e fazendo ajustes, mas uma coisa é igual do primeiro que fizemos até o atual: no primeiro encontro eles chegam muito resistentes. Todos se consideram inocentes, mesmo aqueles que já estão condenados. Alguns ficam em silêncio, outros buscam uma liderança. O fato é que o primeiro dia é o mais difícil de todos. Nunca tive medo porque eles não querem fazer nada com a gente, nunca ameaçaram. Eles estão ali por uma questão deles com as mulheres e entendem que estamos ali para ajudar, para levar informação que talvez eles não tivessem. Queremos que saiam transformados para não cometerem a violência de novo. A gente sai até com muito afeto dali. Tento mostrar que aquilo não é punição, mas oportunidade. A partir do quatro encontro eles já entenderam que o objetivo é diferente do que estavam pensando. A cada grupo eu contribuo, mas também aprendo coisas novas. Eles se tornam mais participativos a cada semana e muitos passam por uma transformação visível.

Existe algum perfil principal ou ponto em comum entre os homens autores de violência doméstica?

Os estudos mostram que, em geral, são homens inseguros e que tentam ter o controle da relação porque isso traz segurança. Não quer dizer que todo homem que é autor de violência vai encaixar nessa forma, mas é algo em comum entre muitos deles. O machismo está presente nesses homens. Um machismo estrutural de repetir comportamento aprendido. Aprendeu assim e não sabe ser diferente. Também existe o uso de álcool e droga como ponto em comum entre muitos casos. Eles não são os causadores da violência, mas potencializam. Como uma das características desse homem é a manipulação, ele faz violência psicológica muito bem, de uma maneira que a mulher vai se sentindo pior. Ele afasta a mulher da rede de apoio dela sutilmente dizendo que a melhor amiga não presta, afastando da família…. E ela não percebe. Quando vê está totalmente vulnerável a esse homem. A violência contra a mulher acontece em qualquer classe social. A diferença é que as pessoas das classes econômicas mais altas denunciam menos, talvez por pudor ou vergonha, mas gradativamente vem aumentando.

Existe alguma motivação que se destaca nos casos?

Existem cinco tipos de violência previstos na Lei Maria da Penha. Se a mulher sofre um deles já tem o direito de fazer registro. O último levantamento que os Guardiões da Vida fizeram, com base nas audiências e nos registros da delegacia, 43% dos casos tiveram o ciúme como motivação. Ciúme da roupa curta, por exemplo, ou da mulher pegar carona com colega de trabalho. Isso nos remete ao machismo estrutural. O ciúme está estritamente ligado ao machismo. Quanto mais machista ele é, mais sensação de posse da mulher ele tem. Se em algum momento a mulher não faz algo que ele queira, desencadeia o ciúme. Naquele ciclo da violência, a tensão vai aumentando e explode. Cada vez que esse ciclo se repete ele vem mais intenso. E sabe quando tem a explosão? Quando a mulher tenta dar um passo a mais, quando tenta sair da submissão e tem algum comportamento desafiador para esse homem. Pode ser uma coisa simples, como colocar um sapato que ele não queria que ela usasse. Pode ser uma resposta, falar mais alto, ter um comportamento que ele não gosta. Eles são inseguros e, quando se sentem ameaçados com um comportamento mínimo, eles explodem. Muitas dessas mulheres recuam nessa hora.

E elas apresentam sentimento de culpa com essa manipulação?

Já ouvi em audiência mulher falando “eu também provoquei porque respondi e nesse dia eu falei alto”. Isso é um trabalho que faço depois da audiência. Descontruir para elas que, se o homem foi preso em flagrante, foi por algo que ele fez. Elas sentem culpa por ele estar preso e temos que mostrar que ela denunciou porque estava sendo vítima. Mostrar que ele não foi preso pela denúncia, mas porque cometeu um crime. Precisamos fazer a mulher entender que ela é vítima e que o comportamento dele que levou à prisão. Não é um trabalho fácil. É doloroso. Mas é gratificante porque vejo um número relativamente grande de mulheres que conseguem, ainda que demorem, seguir outro caminho ou até voltar ao relacionamento depois de passar por processo terapêutico e se fortalecerem.

Mesmo com esse tempo de experiência ainda chegam casos que surpreendem?

Sim, mas vou contar um que foi o primeiro que peguei aqui. Na minha segunda ou terceira semana teve uma audiência que me marcou. A mulher recebeu um soco ou um tapa na cara, o autor foi condenado e a causa foi uma cebola no arroz. No depoimento dele, o autor dizia que a mulher fez de propósito porque sabia que ele não gosta de arroz com cebola. E você fica pensando que ele estava ali respondendo processo por causa de uma cebola no arroz. Ele dizia que saía cedo para trabalhar e não deixava faltar nada em casa. Mais uma vez é o machismo estrutural. Ele acredita que o papel do homem é trabalhar e não deixar faltar nada em casa. Não negou a agressão e, na visão dele, a mulher fez para provocar. Já a mulher explicou que sempre faz o arroz do jeito que ele gosta, mas, naquele dia, tinha uma reunião na escola do filho e, na correria, colocou a cebola por engano. Quando ele chega em casa e destampa a panela, vê a cebola e já agride na hora. Muitos casos me chocam, recebemos situações muito graves. E sempre lembro desse, afinal como pode uma mulher levar um soco por colocar cebola no arroz?

No cenário geral, como estão as ações relacionadas à violência contra a mulher no município e quais os próximos avanços necessários?

No Flor de Lótus temos todo apoio da juíza, que é uma das responsáveis, e isso já é muito. Temos projetos e boas parcerias com a rede pública que funcionam. Quando essa parceria existe, o que está na lei será executado, e vejo isso acontecer com todos os governos desde 2016. A Dr.ª Elen começou a provocação e hoje temos uma equipe de apoio da Secretaria de Saúde, da Secretaria de Assistência Social, da Guarda Municipal, da Câmara de Vereadores, temos o CEAM (Centro Especializado de Atendimento à Mulher), parcerias com empresas… Perto de outros municípios acompanhamos, vejo que Três Rios está à frente nessa questão da violência contra a mulher. Um próximo passo que já foi prometido e será maravilhoso se acontecer é a Casa de Passagem, espaço para acolher a mulher e mantê-la em segurança quando o agressor estiver fugido. Ele não pode encontrar a mulher antes de ser encontrado. Hoje temos parceria com o Grupo Accor e podemos deixar a mulher nessa situação por até duas semanas ou levamos para outros municípios, então seria um avanço. Outros ganhos que tivemos foram a perícia no IML com uma sala exclusiva para receber as mulheres de segunda a quinta-feira. Algo que não existe em outras cidades do interior e foi um ganho da Dr.ª Elen, sempre empenhada com os representantes do município. Nossos números não justificam ter uma Delegacia da Mulher, mas agora temos o NIAM (Núcleo Integrado de Atendimento à Mulher), que funciona dentro da delegacia e, de segunda a sexta-feira, se a mulher for em horário comercial, terá policial civil e assistente social capacitados para esse atendimento. Agora a luta é para que funcione 24 horas todos os dias. Sempre teremos algo para avançar, mas já avançamos muito.

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